terça-feira, 17 de março de 2009

O fantasma dos sapatos de swing


Uma corrida tao ridícula como só pode executar alguém que já não faz exercício desde que os pacotes de açúcar ainda não traziam máximas de vida e conselhos primaveris . Cavalos a resfolegarem-me no peito em transes de pré-AVC.
Um equívocado suspiro de alívio ao ver que o comboio ainda não entrou na plataforma.

E heis que as nuvens se apartam para fazer incidir o mais etéreo raio solar sobre um supremo exemplar de perfeição da arte do calçado.
Ali estavam eles.
Não exactamente como os da foto, mas infinitamente mais cheios de promessas de loucas noites a dançar swing num qualquer Cotton Club em Harlem.
Amarelo mostarda e beiges, uma coquette fita de veludo a compor um laço sobre o peito do pé em jeito de coup de coeur.
fariam corar Marie Antoinette. Que diabos! Fariam corar Imelda Marquez.
Tentei desviar o olhar.
Mas, mais magnéticos que ferro, níquel ou cobalto, suspendeu-se-me a íris em cada passo hesitante daqueles sapatos que esperavam, como eu, a chegada do comboio que swinga entre Lisboa e a mal apelidada margem sul.

Em mim começou a esboçar-se a semente de uma ideia : e se perguntasse a provenência daquele ovo de Fabergé, aquele cristal de Lalique..?

Fui obrigada a confrontar-me com os meus demónios, até aqui tão bem guardados em caixas dentro do roupeiro, da sapateira, no sotão, na despensa e em qualquer recanto onde ainda consigo encafuá-los.

Tenho uma condição.
Que assume laivos de doença.
Um vício incurável e frequentemente de consequências dolorosas.
Sou sapatólica.
Não consigo dizer que não e voltar costas a um par de sapatos que, suplicante, me acene de uma qualquer montra.
Os de biqueira redonda assumem a dianteira no top 10.
Mas os de verniz não se deixam ficar e dão luta.
Sabrinas..atropelam-se pelo pódio.
E sapatos com polka dots riem-se do alto do efeito que sabem surtir em mim.

Assim, vi-me provocada por aquele mágico par de sapatos de swing, de ar vintage e infinitamente feminino, que insistiu em seguir-me, depois de eu me ter apressado a entrar na carruagem assim que o comboio deteve a sua marcha na plataforma.

Qual canto de sereia, endoideceram-me todo o caminho, a olhar-me de debaixo de um banco, de costas para mim, mas não menos teasers por isso.

Estuguei o passo na escada rolante, chegada à minha estação de destino para os ver, maldosos, a atirarem-me um sorriso de cantos da boca arrepanhados, enquanto se afastavam.

Mas ganhei.

Não cedi à tentaçao de perguntar a sua proveniência à portadora daquela égide de elegância.
A recuperação constrói-se assim.
Vivendo um dia de cada vez.
Resistindo à tentação que se coloca mesmo debaixo do nosso nariz.
E suspirando à lembrança daqueles sapatos amarelo mostarda/caramelo sundae.

segunda-feira, 9 de março de 2009

São duas dúzias pra levar!

Duas dúzias de tudo.
De primaveras, de verões, de outonos e invernos.
Feéricos.
Feitos de muito onirismo.
Feitos de dilúvios de melancolia que me tingiram o branco que emoldura a íris.
Feitos de armaduras de responsabilidades e constrangimentos.
Feitos de evolações de passagem de horas despreocupadas na cadência de sorrisos.
Feitos de gargalhas encavalitadas em conversas absurdas, que se articulam com todo o sentido para os interlocutores.


Impreterivelmente, mais do que resoluções de ano novo (que nunca me pareceram pertinentes porque desde sempre que o meu ano se começa a esboçar com a queda das primeiras golden crispy leaves e os primeiros arrepios outonais e não em janeiro), quando se aproxima o simbólico dia da minha saída uterina, amortalho-me em ponderações.

E, de ano para ano, sinto-me simultaneamente mais consciente de mim e mais perdida na indefinição das muitas de mim que vou desenhando em traços desconexos. Rodopiando sem um novelo de lã a que me agarrar para conseguir voltar à definição da simplicidade.

Com um bolso cheio de perguntas e mão vazias de respostas.

terça-feira, 3 de março de 2009

Desde tempos imemoriais que tenho este mesmo (péssimo) hábito.
Sempre que a obrigatoriedade de me preparar para um exame me bafeja com hálitos de urgência, dou comigo evolada em espirais de pensamentos,que se encadeiam como cachos em outros pensamentos ou meras evasões do intelecto para as reentrâncias mais insignificantes que povoam o meu microcosmos.
E, qual Dorothy, dou por mim a acordar longe do Kansas, eu, sem Toto, num confuso e tartamudeante compasso por uma yellow brick road a caminho, não de Oz, mas do naufrágio académico, com sapatinhos vermelhos pontuados por um lacinho. A menos de três dias do juízo final sob a forma de exame, não fiz sequer um terço das leituras essenciais. Tão pouco preparei o magnífico ensaio que deve ser depositado convenientemente na secretária do jubilado docente.
Peças de roupa que me imploram por ser passadas, louças de jantar que se interpõem no meu caminho, o drama de qualquer obssessivo compulsivo, verificações de email pela enésima vez, tudo se parece revestir de um interesse infinitamente prioritário que me afasta das teias de teorias tecidas por Boaventura e companhia, quais carpideiras do mundo sociológico que devo engolir, mais amargo que um lisaspin dissolvido em meio copo de água. mais intragável que uma couve flor.
Entrego-me ao acto de procrastinar, protelando o inadiável que , sem delongas, se abaterá sobre mim pelas 18 horas de uma sexta feira de março em que, ao contrário das outras sextas feiras dos outros meses, não me entregarei ao sono dos justos entre o Fogueteiro e Entrecampos, na cadência hipnótica da fertagus.
Jeebas, na sua infinita ironia, enviará alguém a partilhar kudurus progressivos, ou que quer que seja que chamam a tais sonoridades inoportunas, para me penitenciar pelo meu pecado na dita carruagem ferroviária.


segunda-feira, 2 de março de 2009